Estou apreensiva, e não sou a única. Como tantos outros e outras que conhecem bem a dor e a delícia de viver neste país, encaro com pesar o surto de dengue que assola diversas regiões, sobretudo por presidir a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). As estimativas alarmantes divulgadas desde o fim de janeiro pelo Ministério da Saúde não mentem: nos vemos, mais uma vez, diante da emergência de saúde pública.
O Brasil pode alcançar, apenas em 2024, ano do fenômeno El Niño – que favorece a elevação das temperaturas, a proliferação dos mosquitos e o consequente aumento de infecções por essa e outras doenças tropicais – a assustadora marca de 4,2 milhões de casos. Até agora, a propósito, foram temos cerca de 750 mil casos prováveis, além de uma centena de mortes e mais de 400 óbitos em investigação.
É claro que ninguém quer passar por essa dor de cabeça. Que também é muscular. Abdominal. E atrás dos olhos. Ninguém quer sofrer com vômitos frequentes, acúmulo de líquidos em cavidades corporais, aumento do tamanho do fígado, letargia, fraqueza, irritabilidade ou qualquer outro sintoma severo da dengue, que ameaça a vida e o bem-estar de milhões de pessoas, e sobrecarrega nossos sistemas de saúde. Ora, se é um consenso a necessidade de combater o Aedes aegypti, que transmite ainda a zika e a chikungunya, o que temos feito de errado?
Uma das explicações para a persistência do mosquito é nossa falta de união ao combatê-lo. Recorro ao apelo à nação feito por Nísia Trindade em pronunciamento na última terça-feira: precisamos nos empenhar para evitar a reprodução do inseto. A Ministra da Saúde destacou que 75% dos focos estão localizados em casa. Dizer que “o inimigo mora ao lado” nunca foi tão correto.
Embora não tenham mudado, as medidas profiláticas devem continuar sendo repetidas à exaustão. Algumas delas são evitar água parada; tampar e proteger da chuva as lixeiras; limpar recipientes destinados ao uso de animais ao menos duas vezes por semana; manter os vasos de plantas limpos e cheios de areia até a borda; fechar as tampas dos vasos sanitários ou até mesmo vedar, caso o uso seja eventual; guardar baldes, pratos de plantas e garrafas em local coberto, com as bocas para baixo; conservar caixas d’água, cisternas e poços fechados e vedados, cobrindo com tela aqueles que não têm tampa; descartar corretamente lixo e entulhos; e permitir o acesso dos agentes de controle de zoonoses às nossas residências e estabelecimentos comerciais.
Porém, quando pontuo que nós, cidadãos, temos poder para mudar essa situação, não desresponsabilizo os governos municipais, estaduais e federal. Eles têm de ser cobrados para, por exemplo, estruturar programas de controle e capacitar seus agentes, elaborar medidas emergenciais, adquirir insumos e materiais e contratar serviços capazes de frear o avanço do vírus, e garantir a incorporação no SUS da vacina contra a dengue, Qdenga, da farmacêutica japonesa Takeda.
Foram recebidas 757 mil doses do imunizante em janeiro, e mais 568 mil devem chegar em fevereiro. Daqui a três meses, cerca de 3 milhões de brasileiros e brasileiras devem estar vacinados, considerando o intervalo de três meses entre cada uma das duas doses. Diante da quantidade de pessoas expostas, a cobertura ainda é pequena. É essencial que as autoridades de saúde ajam em conjunto para garantir, sim, que a parcela mais vulnerável da população seja priorizada, mas que vacina no braço seja uma realidade de Norte a Sul.
Nesse contexto, faço questão de ressaltar que o trabalho dos médicos e médicas de família e comunidade, seja pela atuação conjunta na Estratégia de Saúde da Família ou na Atenção Suplementar, é fundamental. Os profissionais possuem conhecimento robusto sobre a doença, e auxiliam na prevenção ao promover uma educação em saúde efetiva junto às comunidades que atendem. Afinal, orientar quanto às melhores maneiras de espantar o mosquito, identificar os indivíduos que apresentam risco aumentado para uma evolução desfavorável da dengue e aplicar o tratamento adequado são ações que fazem bastante diferença.
A luta pela vida requer um esforço coordenado entre os vários setores da sociedade. Que aproveitemos o momento de crise para fortalecer nosso compromisso com a saúde de qualidade e implementar mudanças duradouras em nossas ruas, nossos bairros e cidades. Um futuro mais feliz depende de mim, de você, deles e delas. De todos.
Zeliete Zambon, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade